sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

A Construção Moderna da Doutrina do Sheol-Hades

1. EXPOSIÇÃO DA DOUTRINA. Há diversas representações da concepção bíblica do sheol-hades na teologia atual, e é deveras impossível considerar cada uma delas separadamente. Predomina no presente a idéia de que a concepção veterotestamentária do sheol, à qual se supõe que a do hades do Novo Testamento corresponde, foi copiada da noção gentílica do mundo subterrâneo. Afirma-se que, de acordo com o Velho Testamento, tanto os fiéis como os ímpios, ao morrerem, entram na lúgubre morada das sombras, na terra do esquecimento, onde estão condenados a uma existência que não passa de um fantasioso reflexo da vida na terra. O mundo subterrâneo não é, em si mesmo, um lugar de recompensa, nem de punição. Não está dividido em diferentes compartimentos para os bons e os maus, mas é uma região sem distinções morais. É um lugar de consciências enfraquecidas e sonolenta inatividade, onde a vida perdeu os seus interesses e a alegria da vida se transformou em tristeza. Alguns são de opinião que o Velho Testamento apresenta o sheol como habitação permanente de todos os homens, enquanto outros acham que ele oferece uma esperança de fuga aos fiéis. Ocasionalmente encontramos uma apresentação um tanto diversa da concepção veterotestamentária, na qual o sheol e descrito como dividido em dois compartimentos, quais sejam, o paraíso e a geena, aquele contendo todos os judeus, ou unicamente aqueles que observaram fielmente a lei, e esta abrangendo os gentios. Os judeus serão libertados do sheol quando da vinda do Messias, enquanto que os gentios permanecerão para sempre na habitação das trevas. A contraparte neotestamentária dessa concepção do sheol acha-se em sua descrição do hades. Não se afirma apenas que os hebreus agasalhavam a noção desse mundo subterrâneo, nem que os escritores bíblicos ocasionalmente se acomodavam formalmente, em suas exposições, aos conceitos dos gentios, a respeito dos quais falavam; mas, sim, que este é o conceito escriturístico do estado intermediário.
2. CRÍTICA DESSA APRESENTAÇÃO MODERNA. No abstrato é possível, naturalmente, que a idéia dessa localidade separada, que não é céu nem inferno, na qual os mortos são reunidos e onde permanecem, ou permanentemente, ou até que ocorra alguma ressurreição comunal, fosse mais ou menos corrente no pensamento popular hebraico, e pode ter dado surgimento a algumas descrições figuradas do estado dos mortos; mas, dificilmente isso pode ser considerado, pelos que crêem na inspiração plenária da Bíblia, como um elemento dos ensinos positivos da Escritura, desde que contradiz francamente a apresentação escriturística segundo a qual os justos entram imediatamente na glória, e os ímpios descem imediatamente para um lugar de punição eterna. Além disso, podem ser feitas as seguintes considerações contra essa idéia:
a. Surge a questão sobre se o conceito do sheol-hades¬, tão geralmente considerado agora como escriturístico, é fiel aos fatos ou não. Se foi fiel aos fatos na ocasião em que os livros da Bíblia foram escritos, mas não é mais fiel aos fatos atuais, levanta-se naturalmente a questão, Que foi que produziu a diferença? E se não foi fiel aos fatos, mas era um conceito decididamente falso – e esta é a opinião dominante – surge logo o problema de como essa idéia errônea pôde ser protegida e sancionada, e até ensinada positivamente pelos escritores inspirados da Escritura. O problema não é abrandado pela consideração, feita por alguns, de que a inspiração da Escritura não leva consigo a segurança de que os santos do Velho Testamento estavam certos quando diziam que, quando morrem, os homens entram num lugar subterrâneo, porque não somente esses santos, mas também os escritores inspirados da Escritura empregavam linguagem que, em si mesma e independentemente doutros ensinos claros da Escritura, podia ser interpretada dessa maneira, Nm 16.30; Sl 49.15, 16; 88.3; 89.48; Ec 9.10; Is 5.14; Os 13.14. Esses escritores inspirados laboravam em erro quando falaram que tanto os justos como os ímpios desciam para o sheol? Pode-se dizer que houve um desenvolvimento da revelação a respeito do destino do homem, e não temos motivos para duvidar de que neste ponto, como em muitos outros, aquilo era obscuro, aos poucos foi ganhando definição e clareza; mas certamente isto não significa que o verdadeiro resultou do desenvolvimento do falso. Como poderia? O Espírito Santo consideraria válido que o homem recebesse primeiro impressões falsas o obtivesse noções errôneas e depois, com o transcorrer do tempo, as trocasse por uma percepção correta da condição dos mortos?
b. Se, conforme a exposição bíblica, o sheol-hades é um lugar neutro, sem distinções morais, sem bem-aventurança por um lado, mas também sem positivo sofrimento por outro, lugar ao qual todos descem igualmente, como pode o Velho Testamento falar da descida dos ímpios ao sheol em termos de advertência, como o faz em diversas passagens, como Jó 21.13; Sl 9.17; Pv 5.5; 7.27; 9.18; 5.24; 23.4? Como pode a Bíblia falar da ira de Deus ardendo ali, Dt 32.22, e empregar o termo sheol como sinônimo de abaddon, isto é destruição, Jó 26.6; Pv 15.11; 27.20? Este termo é um forte, aplicado ao anjo do abismo em Ap 9.11. Alguns procuram escapar desta dificuldade concedendo o caráter neutro de sheol e supondo que este era concebido como um mundo subterrâneo com duas divisões, chamadas no Novo Testamento paraíso e geena, aquele sendo a habitação destinada aos justos, e esta, aos ímpios; mas essa tentativa só pode resultar em desapontamento; pois o Velho Testamento não contém nenhum vestígio de tal divisão, conquanto fale do sheol como um lugar de punição para os ímpios. Além disso, o Novo Testamento identifica claramente o paraíso como o céu em 2 Co 12.2, 4. E, finalmente, se hades é o designativo neotestamentário de sheol, e tudo converge para isto, em que fica a condenação especial de Cafarnaum, Mt 11.23, e como pode ele ser retratado como um lugar de tormento, Lc 16.23? Alguém poderia estar inclinado a dizer que as ameaças contidas nalgumas das passagens mencionadas se referem a uma rápida descida ao sheol, mas não há indicação dito o texto em nenhum lugar, exceto em Jó 21.13, onde a afirmação disto é explícita.
c. Se uma descida ao sheol fosse a sombria perspectiva do futuro, não somente dos ímpios mas também dos justos como poderíamos explicar as expressões de jubilosa expectativa, ou de alegria em face da morte, como as que vemos em Nm 23.10; Sl 1.9, 11; 17.15; 49.15; 73.24, 26; Is 25.8 (comp. 1 Co 15.54)? A expressão do Sl 49.15 pode ser interpretada no sentido de que Deus livrará o poeta do sheol ou do poder do sheol. Observe-se também o que o escritor de Hebreus diz dos heróis da fé veterotestamentários, em Hb 11.13-16. Naturalmente, o Novo Testamento fala muitas vezes da jubilosa perspectiva que os crentes têm do futuro, e ensina sobre a sua felicidade consciente no estado desencarnado, Lc 16.23, 25; 23.43; At 7.59; 2 Co 5.1, 6, 8; Fp 1.21,23; 1 Ts 5.10; Ef3.14, 15 (“família... no céu”, não no “hades”); Ap. 6.9, 11; 14.13. Em 2 Co 12.2, 4 “paraíso” é empregado como sinônimo de “terceiro céu”. Em conexão com esta clara apresentação dada pelo Novo Testamento, tem-se sugerido que os crentes neotestamentários são mais privilegiados que os veterotestamentários por terem acesso imediato à bem-aventurança do céu. Mas bem se pode perguntar: Qual a base para se pressupor essa diferença?
d. Se a palavra sheol sempre denota a sombra região na qual descem os mortos, e nunca tem outro significado, então o Velho Testamento, enquanto tem uma palavra para indicar o céu como a bendita habitação de Deus e dos santos anjos, não tem uma palavra referente ao inferno, o lugar de destruição e de castigo eterno. Mas é somente com base no pressuposto de que nalgumas passagens sheol designa um lugar de punição para onde os ímpios vão, em distinção dos justos, que as advertências anotadas no item (b) têm alguma razão de ser. De fato, sheol às vezes é contrastado com shamayim (céus), como em Jó 11.8; Sl 139.8; Am 9.2. A Escritura fala também do sheol mais profundo ou inferior em Dt 32.22. A mesma expressão se acha também no Sl 86.13, mas é evidente que nesta passagem é empregada figuradamente.
e. Finalmente, deve-se notar que havia diferenças de opinião entre os eruditos quanto ao sujeito exato da descida ao sheol e, de alguma forma obscura, continua a sua existência num mundo de sombras, onde as relações da vida ainda refletem as da terra. Esta descrição parece estar em maior harmonia com as afirmações da Escritura, Gn 37.35; Jó 7.9; 14.13; 21.13; Sl 139.8; Ec 9.10. Há alguns que assinalam o fato de que o corpo está incluído. Há perigo de que as “cãs” de Jacó sejam baixadas ao sheol, Gn 42.38; 44.29, 31; Samuel é visto subir como um ancião envolto numa capa, 1 Sm 28.14; e as “cãs” de Simei deverão ser baixadas ao sheol, 1 Rs 2.6,9. Mas, se o sheol é um lugar para onde vão todos os mortos, corpo e alma, o que então é posto no túmulo, que se supõe ser outro lugar? Esta dificuldade é evitada por aqueles eruditos que afirmam que somente as almas descem ao sheol, mas dificilmente se pode dizer que isso está em harmonia com as descrições do Velho Testamento. É verdade que há umas poucas passagens que falam de almas indo para o sheol ou estando lá, Sl 16.10; 30.3; 86.13; 89.48; Pv 23.14, mas é um fato bem conhecido que em hebraico a palavra nephesh (alma), com o sufixo pronominal, é muitas vezes equivalente ao pronome pessoal, principalmente na linguagem poética. Alguns teólogos conservadores adotaram esta elaboração da apresentação veterotestamentária, e encontraram nela um ponto de apoio para a sua idéia de que as almas dos homens estão nalgum lugar intermediário (todavia, um lugar com distinções morais e divisões separadas), até o dia da ressurreição.
3. INTERPRETAÇÃO DE SHEOL-HADES AQUI SUGERIDA. De maneira nenhuma é fácil interpretar estes termos, e, ao sugerir uma interpretação, não queremos dar a impressão de que estamos falando com absoluta segurança. Um estudo indutivo das passagens nas quais se encontram, logo dissipa a noção de que os termos sheol e hades são empregados sempre no mesmo sentido e em todos os casos podem ser traduzidos pela mesma palavra, seja mundo inferior, estado dos mortos, sepultura ou inferno. Isso também se reflete claramente nas várias traduções da Bíblia. A Versão de Holland traduz o termo sheol por sepultura nalgumas passagens, e por inferno noutras. A Versão do Rei Tiago, ou Versão Autorizada (King James ou Authorized Version) emprega três palavras para a sua tradução, a saber, sepultura, inferno e cova (grave, hell e pit). Os revisores ingleses, deveras incoerentemente, conservaram sepultura ou cova no texto dos livros históricos, colocando sheol na margem. Mantiveram somente em Is 14. Os revisores americanos evitaram a dificuldade simplesmente mantendo os vocábulos originais sheol e hades em sua tradução.* Embora tenha alcançado ampla circulação a opinião de que o sheol é simplesmente o mundo inferior ao qual os homens descem, de modo nenhum esta idéia é unânime. Alguns dos eruditos mais antigos identificavam o sheol com a sepultura; há outros que o consideram como o lugar onde são retidas as almas dos mortos; e ainda outros, dentre os quais podemos mencionar Shedd, Vos, Aalders e De Bondt, afirmam que a palavra sheol nem sempre tem o mesmo sentido. Parece-nos que esta ultima opinião merece preferência, e que se pode dizer o seguinte, a respeito dos seus diferentes sentidos:
a. Nem sempre as palavras sheol e hades denotam uma localidade, na Escritura, mas muitas vezes são empregadas num sentido abstrato, para designar o estado de morte, o estado de separação de corpo e alma. Com freqüência, este estado é concebido localmente como constituindo os domínios da morte, e às vezes é retratado como uma fortaleza guarnecida de portas que somente quem lhes possui as chaves pode fechar e abrir, Mt 16.18; Ap. 1.18. Com toda a probabilidade, esta descrição local se baseia numa generalização da idéia do sepulcro, ao qual o homem desce quando entra no estado de morte. Desde que tanto os crentes como os descrentes, ao término da sua vida, entram no estado de morte, bem se pode dizer, figuradamente, que eles estão, sem distinção, no sheol ou no hades. Estão igualmente no estado de morte. O paralelismo demonstra claramente o que se quer dizer numa passagem como 1 Sm 2.6: “O Senhor é o que tira a vida, e a dá; faz descer à sepultura (ao sheol), e faz subir”. CF. também Jó 14.13, 14; 17.13, 14; Sl 89.48; Os 13.14, e várias outras passagens. Evidentemente, a palavra hades é empregada mais de uma vez no sentido não local de estado dos mortos no Novo Testamento, At 2.27, 31; Ap. 6.8; 20.28. Nestas duas ultimas passagens temos uma personificação. Visto que os termos podem denotar o estado de morte, não é necessário provar que nunca se referem a algo concernente igualmente aos justos e aos ímpios, mas somente que não denotam um lugar onde as almas de uns e de outros são reunidas. De Bondt chama a atenção para o fato de que em muitas passagens o termo sheol é empregado no sentido abstrato de morte, poder da morte e perigo da morte.
b. Quando sheol e hades designam uma localidade no sentido literal da palavra, referem-se, ou àquilo que geralmente denominamos inferno, ou à sepultura. A descida ao sheol é apresentada como uma ameaça de perigo e como um castigo para os ímpios, Sl 9.17; 49.14; 55.15; Pv 15.11; 15.24; Lc 16.23 (hades). A advertência e a ameaça contidas nestas passagens ficarão completamente anuladas, se se conhecer sheol como um lugar neutro para onde todos vão. Destas passagens também se infere que não pode ser considerado como um lugar de duas divisões. A idéia de um tal sheol dividido é copiada da concepção gentílica do mundo subterrâneo e não encontra suporte na Escritura. É somente do sheol como estado de morte que podemos falar que tem duas divisões, mas então falamos figuradamente. Mesmo o Velho Testamento atesta que os que morrem no Senhor entram num gozo mais completo das bênçãos da salvação e, portanto, não descem a nenhum mundo subterrâneo, no sentido literal da palavra, Nm 23.5, 10; Sl 16.11; 17.15; 73.24; Pv 14.32. Enoque e Elias foram levados para cima, e não desceram a algum mundo inferior, Hb 11.5 e segtes. Ademais, sheol, não meramente como um estado, mas também como um lugar, é considerado como estando na mais estreita relação com a morte. Se a concepção bíblica da morte for compreendida em sua significação profunda, em sua significação espiritual, prontamente se verá que o sheol não pode ser a morada das almas dos que morrem no Senhor, Pv 5.5; 15.11; 27.20.
Há também diversas passagens nas quais sheol e hades parecem designar a sepultura. Nem sempre é fácil determinar, porém, se as palavras se referem à sepultura ou ao estado dos mortos. As seguintes passagens são algumas das que entram em consideração aqui: Gn 37.25; 42.38; 44.29; 29.31; 1 Rs 2.6, 9; Jó 14.13; 17.13; 21.13; Sl 6.5; 88.3; Ec 9.10. Mas, embora o nome sheol também seja empregado para sepultura, não se segue necessariamente que este é o sentido original da palavra, do qual o seu emprego para designar o inferno é copiado. Com toda a probabilidade, a verdade é o oposto. A sepultura é chamada sheol porque simboliza a ida para baixo, que é relacionada com a idéia de destruição. Quanto aos crentes, o simbolismo bíblico é mudado pela própria Escritura. Paulo afirma que eles são sepultados quando morrem, como uma semente é semeada na terra, da qual brota uma vida nova, mais abundante, mais gloriosa.
No Velho Testamento a palavra sheol é utilizada mais freqüentemente no sentido de sepultura e menos no de inferno, enquanto que no uso correspondente de hades no Novo Testamento dá-se o contrário.
(Berkhof, L – Teologia Sistemática Pg689)

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